A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A AUTONOMIA DAS MEDIDAS PROTETIVAS

Ana Paula Couto – Advogada. Professora de Direito Processual Penal. Doutoranda e Mestra pela UNESA. Autora de livros jurídicos. E-mail: anapaulabmcouto@yahoo.com.br

Marco Couto – Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Penal. Doutorando e Mestre pela UNESA. Autor de livros jurídicos. E-mail: mjmcouto@tjrj.jus.br

A questão trazida nesta coluna é simples, mas tem causado certa perplexidade entre os operadores do Direito, razão pela qual resolvemos externar a nossa ótica sobre o tema. A pergunta a ser respondida é a seguinte: para o deferimento das medidas protetivas, pode a vítima dirigir-se diretamente ao juízo sem previamente requerer a instauração do inquérito policial?

Imaginando-se que a mulher esteja em uma situação verdadeiramente vulnerável que não seja decorrente de uma prática criminal, é importante definir se o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher pode ser procurado na busca do deferimento das medidas protetivas capazes de resguardar os interesses da vítima.

Na nossa concepção, o art. 18, I, da Lei 11340/06, é claro ao afirmar que, recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência.

É claro que, normalmente, o referido pedido é formulado no momento em que a mulher procura a delegacia de polícia para providenciar, ao mesmo tempo, o requerimento de instauração do inquérito policial e também o pedido relativo às medidas protetivas.

Mas nada impede que a vítima perceba que as medidas protetivas são suficientes para a pacificação da situação, dispensando-se a instauração do inquérito policial e, posteriormente, o ajuizamento do processo criminal. Nessa medida, basta que a vítima requeira em juízo o deferimento das medidas protetivas, deixando de adotar quaisquer outras medidas em desfavor do agressor.

O Fórum Nacional de Violência Doméstica – FONAVID, de forma acertada, elaborou o enunciado de nº 37, segundo o qual a concessão de medida protetiva de urgência não está condicionada à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal. Segundo o mencionado enunciado, para o deferimento das medidas protetivas, sequer é necessária a existência do ilícito penal. O mesmo raciocínio deve ser aplicado quando, embora existente o ilícito penal, a vítima opta pela não deflagração do inquérito policial e, depois, do processo criminal.

A doutrina tem conferido adequado tratamento ao tema.

Maria Berenice Dias teve a oportunidade de afirmar o seguinte: A própria Lei Maria da Penha não dá origem a dúvidas, de que as medidas protetivas não são acessórias de processos principais e nem a eles se vinculam. Assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou o mandado de segurança, não protegem processos, mas sim direitos fundamentais do indivíduo. São, portanto, medidas cautelares inominadas, que visam garantir direitos fundamentais e “coibir a violência” no âmbito das relações familiares, conforme preconiza a Constituição Federal (art. 226, § 8º). (A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 149).

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De seu lado, Adriana Ramos de Mello e Lívia de Meira Lima Paiva também registraram o seguinte: As medidas protetivas de urgência não são preparatórias de qualquer ação judicial, mas visam assegurar direitos fundamentais, garantir a segurança da mulher em situação de violência e devem perdurar enquanto a situação de risco existir. (Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 253).

Também é importante registrar alguns julgados que tratam do tema.

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o recurso especial de nº 1.419.421/GO, em 11/02/2014, afirmou o seguinte: As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.

O mesmo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o habeas corpus de nº 340.624/SP, em 23/02/2016, afirmou o seguinte: De início, cumpre esclarecer que as medidas protetivas previstas na Lei 11340/06 visam resguardar a integridade física e psíquica da ofendida, o que prescinde da existência de ação judicial, seja no âmbito criminal ou cível.

Alinhados com os entendimentos acima referidos, também entendemos que as medidas protetivas são medidas cautelares inominadas cujo objetivo não é assegurar o êxito de eventual processo criminal a ser ajuizado. Na dinâmica da Lei Maria da Penha, as medidas cautelares têm ainda mais força porque objetivam garantir os direitos fundamentais da vítima, razão pela qual lhes deve ser dado um tratamento diferenciado. Trata-se de mecanismo processual condizente com a sensibilidade da matéria de fundo que o embasa, qual seja, a situação de vulnerabilidade imposta à vítima de violência doméstica. Portanto, é fundamental que os operadores do Direito reconheçam a sua importância no sentido de proteger as mulheres, dispensando, inclusive, os formalismos tão próprios do nosso sistema de Justiça. Entendemos que não faz sentido burocratizar o acesso à Justiça e dificultar o exame das medidas protetivas porque existem bens mais importantes a serem tutelados: a vida e a saúde da mulher.